quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A CASA - O Mestre, Ato I

O Escritor emergiu da floresta enfastiado pelas picadas dos borrachudos, direto para uma imensa clareira.
No meio dela, cercas de bambu formavam uma trincheira malfeita. À frente, um Arco idêntico ao que ele passara quando o Guarda abriu a trilha. E nele pendia uma única placa de madeira, onde lia-se talhada "A CASA".
Não era uma Casa, nem qualquer casa. Era A Casa, definida como o artigo que a definia. "Pra se definir algo" - pensou o Escritor - "há de haver peculiaridades".
E o Escritor precisava de peculiaridades, precisava de valores.
E precisava de um lugar para tomar um bom banho.

O Escritor chegou à porta frontal.
Do lado da porta, uma tabuleta escrita à giz: "DIÁRIAS, 6 PENCES. SERVIMOS REFEIÇÕES, 1 PENCE CADA, INCLUSO NA DIÁRIA. TEMOS VAGAS. FALAR COM O MESTRE."
_ É um título bastante arrogante pra dar à si mesmo, Mestre... - e bateu à porta.
_ Pois não? - atendeu um homem careca, corpulento e enorme, vestido em um robe de seda roxo e usando pantufas que pareciam ter sido retiradas do fundo de um pântano.
_ Ahn... eu queria saber se vocês têm quarto para pernoitar.
_ Ah, agora sim! Temos.
"Agora sim?" - pensou.
_ Eu... poderia ver?
_ Hm...
O Mestre o observou da cabeça aos pés, em silêncio.
_ Quem dita as regras aqui dentro sou eu. Isso fica claro?
_ Sem problemas, a estalagem é sua não...
_ Entra. - Interrompeu o Mestre, puxando o Escritor para dentro.
_ Obrigado. Escuta, aquele guarda na entrada do matagale, ele é seu...
_ Que horas são? - Interrompeu novamente o Mestre, entrando atrás do balcão de atendimento.
_ Nove e vinte e dois!
_ Certo...É o número 47, você faz a cama de manhã, não temos camareira, café às 8, almoço às 2, lanche as seis, não servimos jantar. Bom dia.
E jogou uma chave dourada, amarrada em um pé de coelho, sobre o balcão.
_ Oh, ok. Obrigado, boa tarde.
_ Ah, e em hipótese alguma - frisou - NUNCA role na cama por mais de três vezes, estou farto disso.
_ O quê?
_ Na cama! - Pousou a mão no ar, simulando um colchão de mola - Não role nela mais que três vezes, enquanto estiver dormindo.
_ Porque?
_ Porque está quebrada.
_ Tá, vou lembrar...


Um estranho sonho povoava sua mente, quando foi interrompido por um baque e uma dor no ombro esquerdo. Estava caído no chão.
_ Mas que... onde está...
A cama jazia imóvel, do outro lado do quarto.
Sem entender, o Escritor ficou de pé e foi até o quarto do Mestre.
Bateu três vezes, de leve. Sem resposta.
Mais três vezes.
_ O QUÊ? - Respondeu gritando, de cara amarrada.
_ Senhor, creio que alguém entrou no meu quarto enquanto eu dormia, os móveis estão fora de lugar...
De súbito, o Mestre enfiou a pesada mão peluda no peito do Escritor e o ergueu do chão pelo colarinho do pijama, enfurecido.
_ QUEM É VOCÊ? COMO ENTROU AQUI?
_ M.. Mestre?! Eu não estou entend...
_ RESPONDA, QUEM É VOCÊ?! - cuspia, enquanto rosnava na cara do Escritor.
_ Sr. Mestre, sou eu! O Escritor! Fiz check-in hoje de manhã!
_ Hoje?! Não atendi ninguém hoje!
_ Como não? Me perguntou que horas eram, eu respondi "Nove e vinte e dois", me deu a chave do...
_ Por que eu perguntaria que horas... aah, você rolou na cama... - completou, decepcionado.
Enquanto amenizava a expressão, colocava o Escritor de volta no chão.
_ Eu não estou entendendo!
_ Você rolou na cama, mais de três vezes! Eu avisei pra não fazer isso!
_ O que você quer dizer com isso?
_ O que eu disse, você é surdo? Com certeza eu deixei claro - falou, cuspindo - que EU ponho as regras aqui dentro! Eu sou o Sistema desse lugar, e se você quiser passar a noite ou descansar ou seja lá o que você veio fazer aqui, as leis sou eu quem dita!!!
_ Veja, eu acho que a grosseria é completamente desneces...
_ Você rolou na cama, sim ou não?! - Interrompeu o Mestre, com a mão espalmada na frente do rosto do Escritor.
_ Eu não sei quantas vezes rolei na cama, provavelmente devo ter rolado dúzias, não fico a vontade na primeira noite em...
_ Vá embora daqui.
A enorme mão do Mestre envolveu completamente o pulso do Escritor, e ele começou a arrastá-lo pelo corredor de madeira, descendo as escadas aos tropeços.
_ O que? Mas tem alguém...
_ Não, vá embora da Casa. Vá lá pra fora, durma lá, pode levar um colchão e cobertas. Não posso aceitar você hoje.
_ Espera, eu...
Mas ele já havia aberto a porta e colocado o Escritor sobre a soleira de entrada.
_ Não tenho tempo, só vá. A diária não será cobrada. Anda, anda! - Foi empurrando o Escritor para fora, pela porta frontal.
_ Isso é um absurdo!
_ Boa noite! - Bateu a porta, e a trancou.
O Escritor, indignado, estica o colchão na soleira e pernoita no sereno, diante da porta.
Ao nascer do dia, ele fica de pé e bate à porta frontal.
_ Pois não?
_ Isso é uma ofensa! Não espere que eu pague por qualquer serviço que você venha a me oferecer! Vocês não tem respeito pelo cliente?!
_ Ah, agora sim! Temos.
"Agora sim?" - pensou.
_ Eu... o quê?
_ Hm...
Silêncio.
_ Quem dita as regras aqui dentro sou eu. Isso fica claro?
_ Eu não dou a MÍNIMA para o seu maldito Sistema!!! Esse ultraje não pode ser
_ Entra. - E puxou ele para dentro, batendo a porta atrás.
_ Eu não terminei! - disse, ajeitando os óculos, enquanto entrava, e o Mestre contornava o balcão.
_ Que horas são?
_ Não sei as horas! - olhou no pulso - Nove e vinte e dois...
_ Certo...É o número 47, você faz a cama de manhã, não temos camareira, café às 8, almoço às 2, lanche as seis, não servimos jantar. Bom dia.
_ Eu sei qual é o quarto, meu senhor! Eu estava nele ontem a noite!
_ Não, você não estava.
_ SIM, EU ESTAVA!
_ NÃO, VOCÊ NÃO ESTAVA! Era pra você estar, mas você não estava. Acontece muito com que "dá a minima ao meu maldito Sistema" - disse caçoando, imitando terrivelmente mal a voz do Escritor - Mas tudo bem, você vai estar agora, apenas suba.
_ Isso é intolerável. Simplesmente INTOLERÁVEL!
O Escritor subiu, inconformado com o comportamento cínico do Mestre.
_ E em hipótese alguma - frisou - NUNCA role na cama por mais de três vezes!
Com o rosto completamente atordoado, o Escritor bateu a porta.
_ Ela está quebrada... maldito Mágico.

Fez-se silêncio o resto daquela tarde, até a hora do almoço, quando o Escritor conheceria LeRoy e A Banda Itinerante.

[PRÓXIMO ATO - A BANDA ITINERANTE]

A CASA - O Guarda, Ato I

Havia esse Escritor que não sabia criar Vida.
Ele tinha o domínio da trama e do drama, mas quando o assunto era um coração, a tinta e o papel não conversavam, a tregua acabava por completo.
Peças e parafusos eram fáceis, iam e vinham com o rolar da fita na máquina, mas quando se tratava de carne, emoção e sentimentos, as palavras corriam de vergonha.
Esse Escritor então resolveu ir atrás das palavras que o fugiam, e um conselho lhe foi dado: afinal, não havia uma vida que ele conhecesse melhor que a dele mesmo. Então, que buscasse em si os Valores que não conseguia descrever. E quando entendesse, teria o Alfa e o Ômega em suas mãos, e talvez um algo a mais.
E com o conselho embaixo do nariz, o Escritor saiu em uma peregrinação.
O Escritor emergiu da curva na trilha limpando seu colete marrom, sua gola
branca-azulada engomada ao máximo, ajeitando seus óculos de armação plástica preta e
alisando os cabelos pretos curtos e oleosos, partindo-os em igual ao meio, até o limite das orelhas onde via-se uma faixa violeta de cabelo raspado muitas vezes, e olhou atentamente para o restante da trilha.
Havia um homem parado no meio dela, em frente à um arco de metal. De um lado, a cerquilha do Precipício e, do outro, a Montanha. Preguiçoso demais para escalar e homo sapiens demais para voar, o Escritor seguiu em frente.
O homem manteve-se, impassível e sério, olhando fixamente para o vazio. Era um homem que de tão magro pareciam que suas vestes iam cair, mas era imponentemente alto. Vestia um armadura de cobre, caneleiras do mesmo material e um capacete em forma de quepe, também de cobre. Seu rosto era enrugado, porém orgulhoso, ostentando um frato e longo bigode que tampava sua boca. Em sua mão direita, uma lança tão longa quanto ele.
Notando que o homem não sairia, o Escritor o abordou.
_ Olá.
O homem permanecia silencioso.
_ Eu gostaria de passar por esse caminho.
_ Não posso deixá-lo fazer isso. - respondeu curto e ríspido o homem, sem desviar seu olhar fixo, porém sem foco definido.
_ Quem é você? - questionou o Escritor, franzindo as sombrancelhas intrigado.
_ Eu sou o Guarda.
_ E o que exatamente você guarda?
_ Eu não posso falar sobre isso.
_ Entendo, deve ser alguma coisa secreta, não?
_ Eu não posso falar sobre isso.
_ Tudo bem, essa é uma propriedade privada?
_ Sim.
_ E a quem pertence?
_ Eu não posso falar sobre isso.
_ Eu posso falar com o proprietário?
_ Não.
_ Então você não vai me deixar passar porque é proibido entrar aí?
_ Eu não posso falar sobre isso.
O Escritor soltou um suspiro de impaciência e largou a mochila no chão.
_ Veja bem, esse é o único caminho - disse, apontando com os dois braços, um para o Precipício, e o outro para a Montanha - que atualmente eu tenho condições de passar, será que você não poderia abrir uma exceção?
_ Eu não posso abrir exceções para ninguém?
_ E porque não?
_ Eu não posso falar sobre isso.
_ Mas façamos o seguinte, não poderia eu tratar com o proprietário das terras...
_ Não.
_ Argh! - bradou o Escritor - Se você não vai sair da minha frente, eu vou passar de qualquer maneira, com licença!
Tão logo o Escritor deu um passo a frente, sentiu uma dor aguda no joelho. Mal pode ele acompanhar o movimento invisível que o Guarda havia feito com o pé da lança em seu joelho e, quando pôde vê-lo, ele já estava terminando de se recolhar à sua posição de sentinela.
_ O que você fez?!
_ Não posso permitir que você passe dessa maneira.
_ E existe alguma maneira que eu possa passar?
_ Sim.
_ E qual é?
_ Eu não posso falar sobre isso.
_ AAAH! - gritava de raiva o Escritor, enquanto ficava sentado no chão abraçando o joelho ferido - E SOBRE O QUE VOCÊ PODE FALAR?
O Guarda não respondeu.
_ Você poderia POR FAVOR me deixar passar em vista de esse ser o único caminho?
_ Pois não.
O Guarda deu um passo para o lado e virou o corpo exatamente noventa graus,
encarando agora o Precipício. O caminho estava livre.
_ AH, finalmente! Obrigado!
_ Por nada.
O Escritor pos-se de pé e deu um passo dentro do arco, quando parou por um instante e resolveu voltar, coçando a cabeça.
_ O que eu fiz para merecer passar?
_ Você só pode passar se for educado.
_ Educado?
_ Sim. Se você pedir para passar educadamente, como você fez agora.
_ Mas, mas... - gaguejou intrigado o Escritor - quando eu cheguei! Eu fui muito educado, eu pedi para passar, e você não deixou.
_ Porque você não pediu.
_ Pedi sim, eu disse "Eu gostaria de passar por aqui".
_ Mas você não pediu.
O Escritor levava as mãos à cabeça, em desespero.
_ Que tipo de pessoa lhe dá ordens dessa natureza?
_ Eu não posso falar sobre isso.
_ É claro que não! - e largou os braços, bufando - Pode pelo menos falar o nome da pessoa que é dona dessa propriedade?
_ Sim.
Silêncio.
_ Então?!
_ Pois não!
_ AAAAAAH... Não, tudo bem. Tudo bem - respirava rapidamente, tentando manter a calma - Por favor, me diga o nome do proprietário deste lugar.
_ O Mestre.
_ E qual o nome dele?
_ Eu não...
_ ... posso falar sobre isso, ok - repetiu com voz de desdém - ok OK! Entendi!
Houve mais um silêncio, por um momento, quando o Escritor olhou em volta e chegou mais perto do Guarda.
_ Escuta, você por acaso fica aqui sozinho?
O Guarda abriu a boca em uma expressão familiar.
_ Tá, já sei, não pode falar sobre isso. Mas sabe se fica alguém te vigiando?
_ Não há ninguém para me vigiar, visto que quem deve vigiar sou eu.
O Escritor gaguejou.
_ Mas o que há com você para liberar algumas informações triviais?
O Guarda cerrou os olhos.
_ Eu jurei não falar sobre outros assuntos à não ser aqueles que me forem
designados.
_ Mas quem está aqui pra punir você caso você não cumpra o que prometeu?
O Guarda, ainda olhando para o nada, retorceu levemente o rosto em tom intrigado.
_ Eu mesmo!
O Escritor soltou uma leve risadinha de desdém.
_ Você?! Você é seu próprio supervisor?
A expressão do Guarda voltou a ser vazia novamente.
_ E zelo para manter minha tarefa sempre cumprida.
_ Você? Não acha que seria meio - e riu mais um pouco - não sei, tendencioso?
_ Não há mais ninguém aqui para julgar-me a não ser você, agora.
O Escritor pensou um pouco.
_ Mas se você falhar, você pode se perdoar! É muito mais fácil do que conseguir o perdão de uma outra pessoa.
_ Isso sim seria tendencioso. - respondeu, sério.
_ E como garantir que você não se permite que isso aconteça? - lançou o Escritor, soando à desafio.
O Guarda parou, pela primeira vez, de encarar o nada, e olhou dentro dos olhos do Escritor. Eram olhos tão gelados que pareciam feitos da mesma pedra da Montanha onde ele se encostava.
_ Por outro lado, se eu escolho me punir, não haverá nenhum consolo e nenhum amparo e nenhum lugar abrigo pra onde eu possa correr e me esconder da eterna pena e julgamento de mim sobre mim mesmo.
O Escritor estava gelado de medo. Sentia a frieza de um julgamento celestial na base dos ossos.
_ Se você não tem ninguém senão a si mesmo - continuou o guarda, fuzilando sua alma com os olhos - é melhor que a primeira coisa que você aprenda seja a se vigiar, se cobrar e possivelmente, se perdoar.
O Escritor voltou um passo para trás, como se fugindo do Guarda e daquele olhar terrível e solitário, mas o Guarda não se moveu um milímetro sequer e, aos poucos, foi resgantando a posição de seu rosto e seu olhar vazio.
_ De outra forma - murmurou o Guarda - você não vai suportar sua própria convivência.
O Escritor assentiu, boquiaberto, enquanto os olhos do Guarda voltavam para encarar o Precipício, sem foco, como estava antes.
Então ele entrou no caminho do Arco, floresta adentro. Assim que deu dois passos para frente, o Guarda voltou à sua posição.
O Escritor sentiu que a devoção do Guarda era quase tão tocante quanto patética. Apesar da convicção de ser o seu próprio juiz, é ridículo pensar que não tomamos atitudes para beneficiarmos a nós mesmos, quase sempre.
Porém havia algo que as noites de boemia do Escritor não iriam permitir que ele entendesse, um conceito novo e talvez crucial pra que ele aprendece a criar a Vida.
A mais completa e terrível solidão.
Um estado de existência onde sua companhia é apenas você.
Não há mais ninguém.
A necessidade social divide sua mente pra abastecer o vício. É assim que a vida faz quando se vê sem outras vidas em volta. E onde ficava a Moral? Era como o Guarda via as coisas, e era como definitivamente o Escritor não estava afim de ver, mas como ele veria à frente é tudo uma questão de tempo, sempre.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Jogo Fechado


_ Você vai fechar os seus olhos e ouvir apenas o som da minha voz. Não há mais nada a sua volta além da minha voz, e tudo está se tornando mais fácil para você compreender. Tudo obedece sua linha de entendimento. Seus olhos estão pesados e você está adormecendo agora. Você está relaxado, tudo está bem... Tudo está bem. Relaxe. Você está flutuando, o ar a sua volta é morno e uma brisa suave está tocando seu rosto. Pouse, agora, aos poucos, com as pontas dos pés. Pouse sobre um solo macio como terra umida. Você sente um cheiro familiar, se sente confortável. Caminhe um pouco. Observe a sua frente, existe uma entrada. Uma luz pálida emerge de dentro dela. Aproxime-se. Existe uma voz, cochichando aí dentro. Essa voz é familiar. O lugar é familiar, você já passou por aí antes mas tinha medo de entrar. Nós vamos entrar juntos, dessa vez, você e esta voz que te guia. Vamos lá, respire fundo. Passe pelo portal e me diga: o que você vê?


_ Olha quem está aqui, a trouxa de ossos! - uma voz tossida e gutural emergiu do fundo da caverna. Dois pontos de luz vermelhos, como duas velas, surgiram pareados no paredão negro. A passos mancos, uma silhueta deformada foi emergindo da escuridão.
Egus nunca na vida havia visto um rosto tão distorcido e tomado por ódio. Os olhos pulsavam em brasa, fumegando para fora dos buracos do crânio, que escorria um líquido meio pastoso e preto. Ainda sim, de alguma forma, era um homem.
_ Você é mais horrível do que eu pensei! - Comentou Egus com uma careta de reprovação - O que é isso no meio da sua cara, uma tatuagem?
_ É uma escarificação, significa "Sinceridade" na lingua do Inferno. - Retrucou Psyche, com sarcasmo na voz.
_ Que mal gosto horroroso. - reprovou Egus, abanando a cabeça e olhando a sua volta. - Onde eu fico?
_ Afaste o mofo dessa pedra e sente-se nela... - Apontou tremulamente Psyche para um bloco de mármore branco na frente do cubo de pedra esculpida. - Quero acabar logo com você, você fede.
A voz era de um velho que fumou mais do que simples tabaco durante a longa e sofrida vida. Parecia que a qualquer momento ele iria cuspir um pedaço do pulmão aos pés de Egus.
_ Eu vim principalmente pra conversar, sabe. Sobre nós.
_ NÃO CONVERSAMOS! - ele rosnou, com o rosto ainda mais distorcido, como se fosse feito de pano. Um poco do liquido espirou de sua boca de dentes cerrados, e ele pode sentir que era algo quente e grudento. Rapidamente limpou a cara.
_ QUEM PÕE... - resmungou ainda gritando, de dedo em riste no nariz de Egus. - Quem põe regras por aqui sou eu. - Concluiu, diminuindo o tom. Psyche varria com as mãos ossudas de dedos compridos e lascados o bloco preto de marmore do outro lado do cubo, e começou a organizar uma dança bizarra para tentar se sentar.
_ Você não dá com seu fucinho por aqui desde... Nunca. E agora vem conversar, não há o que conversar.
_ Então porque me ofereceu um lugar?
_ Pelo desafio! - Psyche esclamou sordidamente, exibindo os dentes amarelos untados na solução preta que vazava em cataratas de seus olhos flamejantes pra dentro de sua boca. - Você sempre gostou de desafiar as pessoas, mas tem essa pessoa que você ainda não desafiou. Então? Vai fugir? - disse, com tom de ameaça.
_ Não fujo de nada, nobre colega. - Egus exibiu um sorriso de canto, desdenhoso.
Psyche soltou uma gargalhada gorgolejante.
_ NÃO FOI O QUE PARECEU, ATÉ HOJE! - Psyche cuspia enquanto rosnava - Trinta e cinco longos anos, amigo! Nacemos juntos!
O sorriso logo sumiu, e Egus franziu o cenho. Não gostava quando lhe lembravam a idade.
_ O que vai ser?

Como ele nunca havia pensado em si e entrado profundamente no que eu pensava e sentia, não se conhecia. Ele nunca buscou olhar para o que sentia, nunca buscou olhar pra dentro de si, e agora ele sabia o motivo, pois se ele tivesse feito isso antes teria morrido de susto com o monstro que habita va suas entranhas. "Talvez ele tenha essa aparência por nunca ter visto a luz do meu interesse por ele" pensou.

_ Eu fico com as negras. Você dispõe as brancas.
_ Por quê? - Questionou Egus, com ar de protesto.
_ Porque eu sou sombrio, e isso é um clichê! - Desdenhou Psyche de boca torta, fazendo uma expressão de deboche enquanto chacoalhava a cabeça.
Egus franziu as sombrancelhas como quem não entendia.
_ Não repare na grosseria, não recebo muitas visitas por aqui... - lamentou Psyche abanando a mão em direção à Egus, como se pedisse desculpas pela piada horrivel.

Os dois se encararam durante um instante, quando os olhos de Psyche pareciam se inflamar mais. Ele estalou os dedos num fatígio alongamento.
_ Note bem essa sua cabeça enorme. - disse Psyche, apontando em círculos para o rosto de Egus - Acontece, meu querido, que ela está oca. Você pode me dizer quantos quilos ela tem? Uns cinco ou seis, talvez?
_ Por que eu haveria de saber isso?
Psyche entortou a boca, ofendido.
_ Você pode pensar que é muito inteligente, mas o FATO - pausou - é que a ignorância tem peso. O primeiro movimento é seu.
Egus avançou com o Peão Real duas casas a frente. Psyche riu.
_ Você fez o menor andar o máximo que ele pode para se impor em um jogo que você já sabe que perdeu? Parece um monte de sacrifício sem objetivo, pra mim. Já me sinto conversando com um saco de carne podre, de tão morto que você está.
_ Só... jogue, vá. Sua vez.
_ Cavalo branco esquerdo, primeira casa à direita.
A peça magicamente saltou os peões e se posicionou, flutuando no ar.
_ Dentro da sua Torre esquerda - cochichava Psyche, olhando para as próprias peças no tabuleiro - tem um pequeno pedaço de ouro puro. É uma peça de uma antiga coroa Maia, vale centenas de milhares. Se você derrotar meu cavalo com ela, é sua.
Egus pegou a peça, desconfiado, e curiosamente olhou por baixo. Não havia nada. Olhou para Psyche de volta, de olhos apertados, envergonhado pela cobiça burra, porém confuso.
Ele soltou uma risadinha soprada de desdém pelo nariz.
_ O que foi? Não confia em você mesmo?
Egus esboçou uma resposta, mas preferiu não dizer nada. Molhou os lábios com a lingua e abaixou os olhares para se concentrar.

No andar do jogo, Egus já havia perdido seis Peões e um Bispo, e havia eliminado apenas dois peões de Psyche. O rei escondia-se com a Torre esquerda.
_ Não é uma situação familiar? Você, caindo aos pedaços, pressionando a vista contra um desenho numa mesa mal iluminada? - Psyche dizia, ameaçando gargalhar.
_ Calado. - Respondeu Egus, tentando se concentrar.
_ Quer que eu te traga um copo de café expresso? Ou quem sabe um desenho da planta de uma casa pra você se sentir mais confortável? - Psyche começava a rir debochadamente.
_ CALA A BOCA! - Exclamou Egus, ríspido.
Psyche trocou a expressão debochada por uma ofendida e ranzinza. Com os olhos flamejando forte e o líquido borbulhando para fora das brasas, virou a cara em sinal de desprezo.
"Minha Rainha ainda está segura, e ele não vai avançar nenhum Peão enquato o Bispo e o Cavalo estiverem no bloco direito em posição estratégica, então é só eu me manter na posição de 'roque' que meu Rei ficará seguro durante um tempo. Ainda tenho o Peão da Torre esquerda para avançar e criar algum tipo de distração... E apesar da situaçõa apertada, minha Torre esquerda pode se aproveitar do Cavalo Esquerdo desprotegido dele. Pode ser que eu perca o jogo, mas em duas jogadas eu ganho a aposta da peça de ouro... Mas pode ser somente um blefe. Não sei."
Psyche o encarava com os buracos no crânio bem abertos, com as chamas ardendo em um laranja vívido, como se ouvisse os pensamentos de Egus e não acreditasse no que ouvia.
"Por outro lado, o Rei dele está entrando em isolamento na direita. Posso atacar com o Bispo e o Cavalo, mas vou perder uma valiosa defesa. Vai ser tudo ou nada. Se for tudo, em seis ou sete jogadas eu tenho um xeque-mate, mas talvez eu perca a Torre esquerda para a Rainha dele. Além de tudo isso, ainda tenho que rezar para que ele não veja minha Rainha exposta no centro. É arriscado e ousado, mas pode definir o jogo se eu conseguir distrair a atenção dele o suficiente. Então é isso: Cavalo direito ou Peão esquerdo. Talvez se eu combinasse as estratégias..."
Psyche socou as duas mãos na pedra, vibrando as peças no tabuleiro e fazendo Egus pular do banco.
_ ME DESCULPA, IRMÃO - gritou Psyche - TE DESCONCENTREI?
_ Estou avaliando as possibilidades, aqui... é proibido? - Egus disse, massageando a cabeça em tom de mau-humor.
_ Não é proibido se auto-flagelar, só não sou muito amante de Masoquismo, entende? - Psyche riu uma risada recém-saida do esgoto, tanto em sujeira quanto em fedor.
Egus entortou o semblante, enfurecido, e moveu o Peão.

Com as têmporas ardendo de tanto esfregar, Egus assistia a Torre esquerda ser eliminada pela Rainha de Psyche.
_ Eee... Lá se vai seu dinheiro, mais inteligência na próxima, irmãozinho! - Debochou Psyche.
Egus suava dentro da camisa de linho branca.
_ O jogo está acabando, camarada, mas antes da jogada final, pense bem: quem realmente está ganhando esse jogo, e contra quem você está jogando? - Psyche disse, em tom filosofal com os dedos no queixo.
_ Se você não vai conversar comigo, então jogue calado! - Egus bradou, contrariado.
A Torre direita de Egus estava cercada, e ele tinha que eliminar o Bispo do outro lado do tabuleiro na esperança de ter sua Rainha passando desapercebida.
_ Ok, sua vez.
Mas ela não passou.
_ Xeque-mate.
Em um bufo de vapor cinza, as peças sumiram do tabuleiro. Psyche ficou em pé, se esticando e estalando cada um dos seus ossos.
_ Se quiser voltar pra conversar, - foi dizendo e aproximando seu rosto ao de Egus, - seu estrume rastejante, - as chamas dos olhos quase tocando seu rosto suado de cabelos molhados - vai ter que aprender o que é mais importante pra você, atacar ou defender.
_ O que? - Egus perguntou, ofegante como se acabasse de voltar de uma maratona.
Psyche afastou-se, desafiante.
_ Você quer tudo! Você perdeu tantas oportunidades fáceis e óbvias, afoito em querer se dar bem em cima das coisas, que só viu chance pra fazer o que tem que ser feito quando era tarde demais, quando você já estava tão fodido que ficava difícil até de respirar. Olha pra você mesmo! - Psyche ria.
Egus não tinha forças para retrucar.
_ Saia daqui e vá aprender a ser uma pessoa. - Psyche apontou a entrada da caverna. - Essa sua cabeça gigante cheia de cérebro está pingando prepotência no meu tapete limpo.
Psyche voltou a sua posição e começou a caminhar de volta para a escuridão do fundo da caverna.
_ Não tem espaço pra bancar o espertinho aqui, - foi dizendo, de costas para Egus - agora suma com essa presença pestilenta sua e leve seu fedor impregnante junto com você.
Egus ainda ficou alguns segundos sentado no mármore, encarando o vazio, abatido, quando de súbito um homem de trinta e cinco anos levantou-se assustado e sentou-se no divã onde estava deitado.