quinta-feira, 22 de julho de 2010

Jogo Fechado


_ Você vai fechar os seus olhos e ouvir apenas o som da minha voz. Não há mais nada a sua volta além da minha voz, e tudo está se tornando mais fácil para você compreender. Tudo obedece sua linha de entendimento. Seus olhos estão pesados e você está adormecendo agora. Você está relaxado, tudo está bem... Tudo está bem. Relaxe. Você está flutuando, o ar a sua volta é morno e uma brisa suave está tocando seu rosto. Pouse, agora, aos poucos, com as pontas dos pés. Pouse sobre um solo macio como terra umida. Você sente um cheiro familiar, se sente confortável. Caminhe um pouco. Observe a sua frente, existe uma entrada. Uma luz pálida emerge de dentro dela. Aproxime-se. Existe uma voz, cochichando aí dentro. Essa voz é familiar. O lugar é familiar, você já passou por aí antes mas tinha medo de entrar. Nós vamos entrar juntos, dessa vez, você e esta voz que te guia. Vamos lá, respire fundo. Passe pelo portal e me diga: o que você vê?


_ Olha quem está aqui, a trouxa de ossos! - uma voz tossida e gutural emergiu do fundo da caverna. Dois pontos de luz vermelhos, como duas velas, surgiram pareados no paredão negro. A passos mancos, uma silhueta deformada foi emergindo da escuridão.
Egus nunca na vida havia visto um rosto tão distorcido e tomado por ódio. Os olhos pulsavam em brasa, fumegando para fora dos buracos do crânio, que escorria um líquido meio pastoso e preto. Ainda sim, de alguma forma, era um homem.
_ Você é mais horrível do que eu pensei! - Comentou Egus com uma careta de reprovação - O que é isso no meio da sua cara, uma tatuagem?
_ É uma escarificação, significa "Sinceridade" na lingua do Inferno. - Retrucou Psyche, com sarcasmo na voz.
_ Que mal gosto horroroso. - reprovou Egus, abanando a cabeça e olhando a sua volta. - Onde eu fico?
_ Afaste o mofo dessa pedra e sente-se nela... - Apontou tremulamente Psyche para um bloco de mármore branco na frente do cubo de pedra esculpida. - Quero acabar logo com você, você fede.
A voz era de um velho que fumou mais do que simples tabaco durante a longa e sofrida vida. Parecia que a qualquer momento ele iria cuspir um pedaço do pulmão aos pés de Egus.
_ Eu vim principalmente pra conversar, sabe. Sobre nós.
_ NÃO CONVERSAMOS! - ele rosnou, com o rosto ainda mais distorcido, como se fosse feito de pano. Um poco do liquido espirou de sua boca de dentes cerrados, e ele pode sentir que era algo quente e grudento. Rapidamente limpou a cara.
_ QUEM PÕE... - resmungou ainda gritando, de dedo em riste no nariz de Egus. - Quem põe regras por aqui sou eu. - Concluiu, diminuindo o tom. Psyche varria com as mãos ossudas de dedos compridos e lascados o bloco preto de marmore do outro lado do cubo, e começou a organizar uma dança bizarra para tentar se sentar.
_ Você não dá com seu fucinho por aqui desde... Nunca. E agora vem conversar, não há o que conversar.
_ Então porque me ofereceu um lugar?
_ Pelo desafio! - Psyche esclamou sordidamente, exibindo os dentes amarelos untados na solução preta que vazava em cataratas de seus olhos flamejantes pra dentro de sua boca. - Você sempre gostou de desafiar as pessoas, mas tem essa pessoa que você ainda não desafiou. Então? Vai fugir? - disse, com tom de ameaça.
_ Não fujo de nada, nobre colega. - Egus exibiu um sorriso de canto, desdenhoso.
Psyche soltou uma gargalhada gorgolejante.
_ NÃO FOI O QUE PARECEU, ATÉ HOJE! - Psyche cuspia enquanto rosnava - Trinta e cinco longos anos, amigo! Nacemos juntos!
O sorriso logo sumiu, e Egus franziu o cenho. Não gostava quando lhe lembravam a idade.
_ O que vai ser?

Como ele nunca havia pensado em si e entrado profundamente no que eu pensava e sentia, não se conhecia. Ele nunca buscou olhar para o que sentia, nunca buscou olhar pra dentro de si, e agora ele sabia o motivo, pois se ele tivesse feito isso antes teria morrido de susto com o monstro que habita va suas entranhas. "Talvez ele tenha essa aparência por nunca ter visto a luz do meu interesse por ele" pensou.

_ Eu fico com as negras. Você dispõe as brancas.
_ Por quê? - Questionou Egus, com ar de protesto.
_ Porque eu sou sombrio, e isso é um clichê! - Desdenhou Psyche de boca torta, fazendo uma expressão de deboche enquanto chacoalhava a cabeça.
Egus franziu as sombrancelhas como quem não entendia.
_ Não repare na grosseria, não recebo muitas visitas por aqui... - lamentou Psyche abanando a mão em direção à Egus, como se pedisse desculpas pela piada horrivel.

Os dois se encararam durante um instante, quando os olhos de Psyche pareciam se inflamar mais. Ele estalou os dedos num fatígio alongamento.
_ Note bem essa sua cabeça enorme. - disse Psyche, apontando em círculos para o rosto de Egus - Acontece, meu querido, que ela está oca. Você pode me dizer quantos quilos ela tem? Uns cinco ou seis, talvez?
_ Por que eu haveria de saber isso?
Psyche entortou a boca, ofendido.
_ Você pode pensar que é muito inteligente, mas o FATO - pausou - é que a ignorância tem peso. O primeiro movimento é seu.
Egus avançou com o Peão Real duas casas a frente. Psyche riu.
_ Você fez o menor andar o máximo que ele pode para se impor em um jogo que você já sabe que perdeu? Parece um monte de sacrifício sem objetivo, pra mim. Já me sinto conversando com um saco de carne podre, de tão morto que você está.
_ Só... jogue, vá. Sua vez.
_ Cavalo branco esquerdo, primeira casa à direita.
A peça magicamente saltou os peões e se posicionou, flutuando no ar.
_ Dentro da sua Torre esquerda - cochichava Psyche, olhando para as próprias peças no tabuleiro - tem um pequeno pedaço de ouro puro. É uma peça de uma antiga coroa Maia, vale centenas de milhares. Se você derrotar meu cavalo com ela, é sua.
Egus pegou a peça, desconfiado, e curiosamente olhou por baixo. Não havia nada. Olhou para Psyche de volta, de olhos apertados, envergonhado pela cobiça burra, porém confuso.
Ele soltou uma risadinha soprada de desdém pelo nariz.
_ O que foi? Não confia em você mesmo?
Egus esboçou uma resposta, mas preferiu não dizer nada. Molhou os lábios com a lingua e abaixou os olhares para se concentrar.

No andar do jogo, Egus já havia perdido seis Peões e um Bispo, e havia eliminado apenas dois peões de Psyche. O rei escondia-se com a Torre esquerda.
_ Não é uma situação familiar? Você, caindo aos pedaços, pressionando a vista contra um desenho numa mesa mal iluminada? - Psyche dizia, ameaçando gargalhar.
_ Calado. - Respondeu Egus, tentando se concentrar.
_ Quer que eu te traga um copo de café expresso? Ou quem sabe um desenho da planta de uma casa pra você se sentir mais confortável? - Psyche começava a rir debochadamente.
_ CALA A BOCA! - Exclamou Egus, ríspido.
Psyche trocou a expressão debochada por uma ofendida e ranzinza. Com os olhos flamejando forte e o líquido borbulhando para fora das brasas, virou a cara em sinal de desprezo.
"Minha Rainha ainda está segura, e ele não vai avançar nenhum Peão enquato o Bispo e o Cavalo estiverem no bloco direito em posição estratégica, então é só eu me manter na posição de 'roque' que meu Rei ficará seguro durante um tempo. Ainda tenho o Peão da Torre esquerda para avançar e criar algum tipo de distração... E apesar da situaçõa apertada, minha Torre esquerda pode se aproveitar do Cavalo Esquerdo desprotegido dele. Pode ser que eu perca o jogo, mas em duas jogadas eu ganho a aposta da peça de ouro... Mas pode ser somente um blefe. Não sei."
Psyche o encarava com os buracos no crânio bem abertos, com as chamas ardendo em um laranja vívido, como se ouvisse os pensamentos de Egus e não acreditasse no que ouvia.
"Por outro lado, o Rei dele está entrando em isolamento na direita. Posso atacar com o Bispo e o Cavalo, mas vou perder uma valiosa defesa. Vai ser tudo ou nada. Se for tudo, em seis ou sete jogadas eu tenho um xeque-mate, mas talvez eu perca a Torre esquerda para a Rainha dele. Além de tudo isso, ainda tenho que rezar para que ele não veja minha Rainha exposta no centro. É arriscado e ousado, mas pode definir o jogo se eu conseguir distrair a atenção dele o suficiente. Então é isso: Cavalo direito ou Peão esquerdo. Talvez se eu combinasse as estratégias..."
Psyche socou as duas mãos na pedra, vibrando as peças no tabuleiro e fazendo Egus pular do banco.
_ ME DESCULPA, IRMÃO - gritou Psyche - TE DESCONCENTREI?
_ Estou avaliando as possibilidades, aqui... é proibido? - Egus disse, massageando a cabeça em tom de mau-humor.
_ Não é proibido se auto-flagelar, só não sou muito amante de Masoquismo, entende? - Psyche riu uma risada recém-saida do esgoto, tanto em sujeira quanto em fedor.
Egus entortou o semblante, enfurecido, e moveu o Peão.

Com as têmporas ardendo de tanto esfregar, Egus assistia a Torre esquerda ser eliminada pela Rainha de Psyche.
_ Eee... Lá se vai seu dinheiro, mais inteligência na próxima, irmãozinho! - Debochou Psyche.
Egus suava dentro da camisa de linho branca.
_ O jogo está acabando, camarada, mas antes da jogada final, pense bem: quem realmente está ganhando esse jogo, e contra quem você está jogando? - Psyche disse, em tom filosofal com os dedos no queixo.
_ Se você não vai conversar comigo, então jogue calado! - Egus bradou, contrariado.
A Torre direita de Egus estava cercada, e ele tinha que eliminar o Bispo do outro lado do tabuleiro na esperança de ter sua Rainha passando desapercebida.
_ Ok, sua vez.
Mas ela não passou.
_ Xeque-mate.
Em um bufo de vapor cinza, as peças sumiram do tabuleiro. Psyche ficou em pé, se esticando e estalando cada um dos seus ossos.
_ Se quiser voltar pra conversar, - foi dizendo e aproximando seu rosto ao de Egus, - seu estrume rastejante, - as chamas dos olhos quase tocando seu rosto suado de cabelos molhados - vai ter que aprender o que é mais importante pra você, atacar ou defender.
_ O que? - Egus perguntou, ofegante como se acabasse de voltar de uma maratona.
Psyche afastou-se, desafiante.
_ Você quer tudo! Você perdeu tantas oportunidades fáceis e óbvias, afoito em querer se dar bem em cima das coisas, que só viu chance pra fazer o que tem que ser feito quando era tarde demais, quando você já estava tão fodido que ficava difícil até de respirar. Olha pra você mesmo! - Psyche ria.
Egus não tinha forças para retrucar.
_ Saia daqui e vá aprender a ser uma pessoa. - Psyche apontou a entrada da caverna. - Essa sua cabeça gigante cheia de cérebro está pingando prepotência no meu tapete limpo.
Psyche voltou a sua posição e começou a caminhar de volta para a escuridão do fundo da caverna.
_ Não tem espaço pra bancar o espertinho aqui, - foi dizendo, de costas para Egus - agora suma com essa presença pestilenta sua e leve seu fedor impregnante junto com você.
Egus ainda ficou alguns segundos sentado no mármore, encarando o vazio, abatido, quando de súbito um homem de trinta e cinco anos levantou-se assustado e sentou-se no divã onde estava deitado.